Artigo: Da participação de incapaz (menor) em sociedade

por Graciano Pinheiro de Siqueira
Qui, 03 de Novembro de 2011 07:32

O presente trabalho é resultado de representação formulada pelo Ministério Público do Trabalho, encaminhada à Egrégia Corregedoria Geral da Justiça (fls. 2), e desta para a 1ª. Vara de Registros Públicos da Capital/SP, que, na qualidade de Juízo Corregedor Permanente do 4º Oficial de Registro de Títulos e Documentos e Civil de Pessoa Jurídica, cargo do qual, até o momento, somos o designado para por ele responder, solicitou-nos informação a respeito do registro (lato senso) de uma alteração de contrato social, efetuado no ano de 2008, a qual foi, com fulcro nos argumentos abaixo, devidamente prestada, no processo nº 0036419-30.2011.8.26.0100, cuja decisão transcrevemos no final.

Segundo o representante do Ministério Público do Trabalho, aludida alteração contratual, em face da admissão, no quadro de sócios, de menor impúbere, teria sido elaborada "ao arrepio das normas específicas aplicáveis à espécie, a saber: Artigo 974 Código Civil vigente:

"Poderá o incapaz, por meio de representante ou devidamente assistido, continuar a empresa antes exercida por ele enquanto capaz, por seus pais ou pelo autor da herança.

Parágrafo 1º - Nos casos deste artigo, precederá autorização judicial, após exame das circunstâncias e dos riscos da empresa, bem como da conveniência em continuá-la, podendo a autorização ser revogada pelo juiz, ouvidos os pais, tutores ou representantes legais do menor ou do interdito, sem prejuízo dos direitos adquiridos por terceiros", concluindo ser o ato jurídico nulo pleno jure, já que a entrada da menor, na sociedade, se deu sem a mencionada autorização judicial.

Ocorre, entretanto, que os dispositivos do Código Civil, supra citados, dirigem-se ao empresário individual, e não à sociedade, o que se vê, claramente, da redação da norma, não fosse suficiente o fato de estar ela inserida no capítulo relativo à capacidade do empresário, e dizem respeito a uma situação específica, qual seja, a da possibilidade, excepcional, de o empresário incapaz exercer empresa (atividade econômica organizada para a produção ou circulação de bens e prestação de serviços) nos casos de incapacidade superveniente ou incapacidade do sucessor na sucessão por morte, conforme, inclusive, Enunciado nº 203 do Conselho da Justiça Federal, aprovado na III Jornada de Direito Civil.

Efetivamente, pode ocorrer que o pai ou a mãe do menor sejam empresários (individuais) e que, em determinado momento, não mais possam ou queiram continuar com sua empresa. De fato, pode qualquer deles ser atingido por uma incapacidade superveniente ou falecer ou, ainda, ter de abandonar o empreendimento por qualquer motivo, como na opção de assumir um cargo público que lhe traz impedimento, etc... Situação semelhante verifica-se quando falece um parente do qual o menor é único herdeiro.

Se qualquer desses eventos ocorrer e não houver quem tenha condições de dar prosseguimento à empresa, pode o menor, como qualquer outro incapaz, "por meio de representante ou devidamente assistido, continuar a empresa antes exercida (...) por seus pais ou pelo autor da herança", observadas as mesmas condições previstas nos parágrafos 1º e 2º do art. 974 do Código Civil. Neste sentido, os comentários ao referido art. 974, feitos tanto por Ricardo Fiúza, na obra "Novo Código Civil Comentado", 2002, Editora Saraiva, 1ª. Edição, 2ª. Tiragem, p. 880, como por Alfredo de Assis Gonçalves Neto, na obra "Direito de Empresa – Comentários aos artigos 966 a 1.195 do Código Civil", 2007, Editora Revista dos Tribunais, págs. 89 a 92.

Circunstância diversa é a relacionada ao ingresso de incapaz, incluindo aí o menor, púbere ou impúbere, em sociedade, por causa mortis (herança de quotas) ou por ato inter vivos (doação ou alienação de quotas), assunto este que já rendeu muita discussão, mas que, hodiernamente, está pacificado, notadamente a partir da "Talvez a mais importante decisão do STF, no último período de trinta anos, na matéria relacionada com o direito societário, foi a que resultou na liberação para a participação de menores de idade nas sociedades por quotas de responsabilidade limitada" (Problemas das Sociedades Limitadas e Soluções da Jurisprudência, LED Editora de Direito, 1997, p. 25, Luiz Antonio Soares Hentz).

Eis o leading case:

Denegou a Junta Comercial do Estado de São Paulo o arquivamento de alteração contratual, segundo a qual passavam a integrar determinada sociedade por quotas de responsabilidade limitada dois menores, filhos do principal quotista, estando o capital inteiramente realizado e vedado aos menores-quotistas os poderes de administração e gerência.

Interposto mandado de segurança, com resultado favorável nas duas instâncias ordinárias, alçou-se o processo ao Pretório Excelso, o qual, a 26 de maio de 1976, sendo relator o Ministro Xavier de Albuquerque, confirmou a concessão do mandamus. E fê-lo, à unanimidade, em Sessão Plenária, fundado nas lições de João Eunápio Borges, Plácido e Silva, Pedro Barbosa Pereira e Cunha Peixoto, tendo o acórdão a seguinte ementa: "Sociedade por Quotas, de responsabilidade limitada. Participação de menores, com capital integralizado e sem poderes de gerência e administração, como quotistas. Admissibilidade reconhecida, sem ofensa ao art. 1º do Código Comercial" (Revista Trimestral de Jurisprudência, vol. 78, p. 608. O acórdão do 1º Tribunal de Alçada Civil de S.Paulo está publicado in RT 471/132). No mesmo sentido, pode ser conferido o julgamento unânime do STF, por seu Pleno, no Recurso Extraordinário nº 82433-SP (DJU, seção I, de 08/07/76, pág. 5.129).

No tocante à realização do capital social, tal exigência se justifica, pois, uma vez integralizadas as quotas sociais de todos os sócios, em princípio, nenhum deles mais poderá ser chamado para responder com seus bens pessoais pelas dívidas da sociedade, e essa é uma das grandes vantagens apresentadas pelas sociedades limitadas. Mas, mesmo que ocorra responsabilização pessoal, esta, por óbvio, somente poderá recair naquele que exercer a administração da sociedade, o que em relação ao sócio menor é vedado.

Tamanha repercussão tiveram os julgados que, já em novembro de 1976, o DNRC (Departamento Nacional de Registro do Comércio), expedia ofício-circular nº 22, expressamente determinando a todas as Juntas Comerciais do País sua integral observância, verbis:

"Tendo em vista que a jurisprudência é fonte de lei e como as decisões do STF a tornam exigível aos casos análogos, entende o DNRC que, doravante, as Juntas Comerciais devem aceitar e deferir os contratos sociais onde figurem menores impúberes, desde que as suas cotas estejam integralizadas e não constem nos contratos sociais atribuições aos mesmos, relativos à gerência e administração" (sic).

O ofício-circular ,vê-se hialinamente, procurou sintetizar a veneranda decisão de nossa mais Alta Corte, tanto que, referindo-se o julgamento a menores impúberes, o adjetivo foi nele repetido, em flagrante ilogicidade, dando azo a que se concluísse que os menores púberes estariam impedidos de adquirir o status de sócio das limitadas.

Embora acabasse não sendo essa a conclusão das Juntas, o equívoco, no entanto, somente foi corrigido com a edição, pelo mesmo DNRC, da Instrução Normativa nº 29, de 19 de abril de 1991, do seguinte teor:

"Art. 17 – O arquivamento de atos de sociedades por quotas de responsabilidade limitada, da qual participam menores, será procedido pelo órgão de registro, desde que:

I- o capital da sociedade esteja totalmente integralizado, tanto na constituição, como nas alterações contratuais;

II- não seja atribuído ao menor quaisquer poderes de gerência ou administração;

III- o sócio menor seja representado ou assistido, conforme o caso".

Ainda que revogada a referida IN nº 29 pela IN nº 46, de 06/03/1996, o certo é que a posição do DNRC quanto ao tema continua sendo a mesma até o presente momento, bastando, para tanto, verificar a IN nº 98, de 23/12/2003, que trata do Manual de Atos de Registro da Sociedade Limitada, em seus itens 1.2.16.5 e 1.2.23.7, que assim dispõem:

"1.2.16.5 – Sócio menor de 18 anos, não emancipado

Participando da sociedade sócio menor, não emancipado, o capital social deverá estar totalmente integralizado, e este não pode fazer parte da administração.

1.2.23.7 – Sócio menor de 18 anos, não emancipado

Não poderão ser atribuídos ao sócio menor de 18 anos, não emancipado, poderes de administração."

A própria JUCESP tem dois Enunciados sobre a matéria (8 e 9), com a seguinte redação:

"8 - Administração – sócio menor

O sócio menor, não emancipado, não pode ser administrador de sociedade.

9- Sócios representados e assistidos

Havendo sócio absolutamente ou relativamente incapaz, o contrato, na primeira hipótese, deverá ser assinado pelo representante legal, na segunda hipótese, pelo sócio e por quem o assistir, Código Civil art. 1690".

É importante frisar que o menor, ou qualquer outra pessoa, por assumirem a condição de sócio, não se tornam empresários. Empresária será a sociedade da qual participam.

Sobre a evolução histórica da questão e a posição doutrinária a respeito (pró e contra a participação de menor em sociedade), vale a pena verificar a obra "Das Sociedades Limitadas", de José Waldecy Lucena, Editora Renovar, 2003, 5ª. Edição, págs. 228 a 232. Convém, também, sobre o assunto, conhecer o pensamento dos juristas José Edwaldo Tavares Borba e Sérgio Campinho nas obras, respectivamente, "Direito Societário", 2004, 9ª. Edição, Editora Renovar, págs. 42 a 45 e 62, e "O Direito de Empresa à Luz do Novo Código Civil", 2005, 5ª. Edição, Editora Renovar, págs. 195 a 198.

Portanto, com base nas decisões unânimes do STF, as Juntas Comerciais, e, por extensão, os Registros Civis das Pessoas Jurídicas, vêm, de há muito tempo, aceitando contratos ou alterações contratuais com sócios menores, desde que presentes os pressupostos indicados pelo Tribunal, e, com o advento da recentíssima Lei nº 12.399, de 1º de abril de 2011, deverão fazê-lo com muito mais razão, eis que a novel legislação acrescentou, ao artigo 974 do Código Civil, o parágrafo 3º, com o seguinte teor:

"Art. 974....

Parágrafo 3º O Registro Público de Empresas Mercantis a cargo das Juntas Comerciais deverá registrar contratos ou alterações contratuais de sociedade que envolva sócio incapaz, desde que atendidos, de forma conjunta, os seguintes pressupostos:

I- o sócio incapaz não pode exercer a administração da sociedade;

II- o capital social deve ser totalmente integralizado;

III- o sócio relativamente incapaz deve ser assistido e o absolutamente incapaz deve ser representados por seus representantes legais."

Evidentemente, em se tratando de uma sociedade de natureza simples, a mesma regra deverá ser observada pelo RCPJ.

Note-se que aquilo que já estava consagrado pela doutrina e pela jurisprudência foi incorporado, pelo legislador, no ordenamento jurídico pátrio, sendo oportuno destacar que, em nenhum momento, para o ingresso de incapaz em sociedade, e, em especial, do menor, se falou em autorização judicial.

De todo o exposto, tem-se que o registro efetuado pela serventia é, contrariando o entendimento do parquet, perfeitamente válido e eficaz, estando em plena consonância com o direito, eis que realizado com rigorosa observância dos requisitos acima mencionados.

Cabe observar que a sociedade, em razão da sua última averbação, efetivada em 2009, mudou sua natureza, de simples para empresária, deslocando seus registros para a JUCESP.

A recente decisão, de 10 de outubro de 2011, abraçou, integralmente, nosso raciocínio sobre o tema, sendo do seguinte teor:

"Processo nº: 0036419-30.2011.8.26.0100 – Pedido de Providências

Requerente: Corregedoria Geral da Justiça

Conclusão

Em 29.09.2011, faço estes autos conclusos ao MM. Juiz Gustavo Henrique Bretas Marzagão. Eu,_______, esc., subs.

VISTOS.

Cuida-se de expediente encaminhado pela E. Corregedoria Geral da Justiça contendo representação formulada pelo Ministério Público do Trabalho contra o 4º Oficial de Registro de Títulos e Documentos e Civil de Pessoa Jurídica nos autos da reclamação trabalhista nº 00359-2009-072-02-00-6, da E. 72ª. Vara do Trabalho.

Aduz o Ministério Público do Trabalho que a menor impúbere Suzanna Heinze foi inserida na sociedade empresarial reclamada naquela ação trabalhista ao arrepio do art. 974, parágrafo 1º, do Código Civil, na medida em que sem autorização judicial, o que torna nulo de pleno direito o ato jurídico na forma do art. 166, I e V, do Código Civil (fls. 159/160).

O Oficial prestou informações às fls. 167/175.

É o relatório. Fundamento e decido.

A representação do Ministério Público do Trabalho questiona a alteração contratual da empresa S.H. Lavanderia LTDA, reclamada e executada nos autos da ação trabalhista nº 00359-2009-072-02-00-6, da E. 72ª. Vara do Trabalho, por meio da qual foi inserida na qualidade de sócia a menor impúbere Suzanna Heinze sem a autorização judicial prevista no parágrafo 1º, do art. 974, do Código Civil.

Exercer empresa é diferente de ser sócio de sociedade. A autorização judicial de que cuida o parágrafo 1º, do art. 974, do Código Civil, diz respeito ao empresário individual e não ao sócio de sociedade.

Fábio Ulhoa Coelho bem explica a diferença entre o empresário individual e a sociedade empresária:

"Deve-se desde logo acentuar que os sócios da sociedade empresária não são empresários. Quando pessoas (naturais) unem seus esforços para, em sociedade, ganhar dinheiro com a exploração empresarial de uma atividade econômica, elas não se tornam empresárias. A sociedade por elas constituída, uma pessoa jurídica com personalidade autônoma, sujeito de direito independente, é que será empresária, para todos os efeitos legais. Os sócios da sociedade empresária são empreendedores ou investidores, de acordo com a colaboração dada à sociedade (os empreendedores, além de capital, costumam devotar também trabalho à pessoa jurídica, na condição de seus administradores, ou as controlam; os investidores limitam-se a aportar capital). As regras que são aplicáveis ao empresário individual não se aplicam aos sócios da sociedade empresária – é muito importante apreender isto" (Manual de Direito Comercial, Saraiva, 17ª. Ed., págs. 19/21 – grifou-se).

E continua:

"Em relação às pessoas físicas, o exercício de atividade empresarial é vedado em duas hipóteses (relembre-se que não se está cuidando, aqui, das condições para uma pessoa física ser sócia de sociedade empresária, mas par ser empresária individual). A primeira diz respeito à proteção dela mesma, expressa em normas sobre capacidade (CC, arts. 972, 974 a 976); a segunda refere-se à proteção de terceiros e se manifesta em proibições o exercício da empresa (CC, art. 973). (grifou-se)"

Mais adiante, ao tratar dos requisitos das sociedades contratuais, expõe que: "é importante ressaltar que a contratação de sociedade limitada por menor, devidamente representado ou assistido, tem sido admitida pela jurisprudência, desde que não tenha poderes de administração e o capital social esteja totalmente integralizado" (pág. 132).

É nesse última situação que se insere o caso em exame. De acordo com a cláusula quarta, do contrato social, administração da sociedade compete com exclusividade a Paulo Roberto Heinze. O capital social está totalmente integralizado (cláusula segunda) e a menor está representada por seu pai (cláusula primeira – fls. 63/68).

Há tempos o Supremo Tribunal Federal admite que o menor seja sócio de sociedade limitada, desde representado ou assistido, que o capital social esteja totalmente integralizado, e que não exerça atos de administração:

"Sociedade por quotas de responsabilidade limitada. Participação de menores, com capital integralizado e sem poderes de gerência e administração com cotistas. Admissibilidade reconhecida, sem ofensa ao art. I do Código Comercial. Recurso Extraordinário não conhecido."(RE 82433-SP).

Correta, por conseguinte, a qualificação do 4º Oficial de Registro de Títulos e Documentos e Civil de Pessoa Jurídica ao averbar a alteração contratual questionada pelo Ministério Público Federal na presente reclamação, porque inaplicável, na espécie, o parágrafo 1º, do art. 974, do Código Civil.

É certo que, ao que tudo indica, a alteração contratual em questão sugere manobra furtiva de responsabilização frente ao credor trabalhista. Contudo, esse fato é de natureza intrínseca do título, de modo que não pode ser conhecida por esta Corregedoria Permanente, cuja competência limita-se ao exame dos aspectos extrínsecos do título, os quais estão em harmonia com o ordenamento jurídico. Assim, a anulação da alteração contratual deve ser postulada nas vias ordinárias.

Posto isso, não verificada qualquer violação funcional na conduta do Oficial de Registro de Títulos e Documentos e Civil de Pessoa Jurídica, determino o arquivamento dos autos.

Com cópia desta, comunique-se a E. Corregedoria Geral da Justiça, e ao MM. Juízo da E. 72ª. Vara do Trabalho.

Oportunamente, ao arquivo.

P.R.I.C.

São Paulo, 10 de outubro de 2011.

Gustavo Henrique Bretãs Marzagão

Juiz de Direito"

 

O autor: Graciano Pinheiro de Siqueira, 4º Oficial (Designado) de Registro de Títulos e Documentos e Civil de Pessoa Jurídica da Capital/SP, especialista em Direito Comercial pela Faculdade de Direito da USP.

Fonte: Site do IRTDPJBrasil

Extraído de AnoregBR

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